
Ilusões de Grandeza- Sousa Jamba
À primeira vista, julguei que fosse brincadeira. Um daqueles vídeos irónicos que circulam e a que alguns são peritos. Depois percebo: é mesmo verdade. Ela, dessas que se fotografa todos os dias, maquilhada, impecável, cara. Casou com um santomense. Foi para São Tomé.
Chega e leva o choque da vida. A casa é de madeira. A família dele é pobre. Vivem da pesca. Ela indigna-se: como pode uma mulher habituada ao luxo ter vindo parar aqui, assim, nesta ilha, nestas condições?
Pensei que fosse troça. Se não quer, Luanda fica ali ao lado; a viagem não arruína ninguém; pode voltar no próximo voo. O pior, se for verdade, é o propósito do vídeo: expor o homem. Humilhá-lo. Não é relato. É crueldade com filtro.
Há, porém, um fundo mais turvo: a Internet e as novas tecnologias. A câmara, os filtros, a vitrine das fotografias. Tudo atiça o exibicionismo que dorme em nós. Manipulamos a imagem; polimos a pele; afinamos o cenário. Publicamos. Chegam os comentários: “linda”, “maravilhosa”, “um luxo”. Sem consciência de si, confunde-se aplauso com verdade. As plataformas, do Facebook às restantes, alimentam delírios de grandeza.
Em todos há uma semente de narcisismo. As redes regam-na. Em homens e em mulheres floresce; muitas vezes, sobre as mulheres cai a exigência do rosto perfeito, da vida sem falha. O resultado é uma starlet convencida de ser Ferrari, Bugatti ou Rolls-Royce. É só verniz. À primeira chuva, descasca.
Há também um mercado afetivo, objetivo e subjetivo. Padrões, preferências, hierarquias. Lembro um vídeo de uma jovem em Lisboa que, num arrebatamento, jurou afastar-se de homens angolanos. Chamou-lhes infiéis, ambiciosos, imundos. Prometeu casar-se com um homem branco. Passaram anos. A Internet não esquece. Quando se soube que casara com um homem negro, ressurgiu a gravação; alguém montou compilações; a turba celebrou a contradição. A lição é simples: palavras ditas em fogo voltam frias e cortantes.
Convém também medir expectativas. Quem parte para Portugal à procura de um casamento com um português branco encontra regras não escritas. A maioria escolhe parceiros do mesmo meio social e cultural; o namoro tende a ser assortativo. Para contrariar o padrão é preciso mais do que desejo. É preciso afinidade de valores, língua partilhada, tempo, redes, estabilidade, projeto de vida. Às vezes conta a beleza; às vezes contam recursos e capital social; quase sempre contam carácter, trabalho e compatibilidade.
E convém pôr os pés no chão. Viver numa casa de madeira em São Tomé, convenhamos, não é uma queda vertiginosa para a média de quem vive em Luanda; para muita gente na Luanda, é realidade conhecida. A própria protagonista não parece vir de família abastada, dessas com nome, dinheiro e hábitos fixos de classe; parece comum, de casa comum. Não é beleza de concurso; não é “Miss Mundo”. O traço que mais sobressai é uma autoimagem inflacionada que, por vezes, pode seduzir.
O homem, ao que se percebe, vem da pobreza; é ambicioso; procura vida melhor; pode muito bem ser decente. Talvez, em Angola, ela tenha confundido sinais e suposto fortuna onde havia esforço. Mas casamento não se mede a dinheiro. Mede-se a respeito, projeto, paciência. Quando se faz do bolso o barómetro do afeto, arma-se a armadilha. É assim que muitos caem: entram num enredo de ilusão, acordam para a conta bancária, e vivem num azedume constante, sempre tristes, sempre a comparar-se com uma vida que só existe no ecrã.
Falta ainda a pergunta simples, própria da análise e da economia doméstica: o que leva ela à mesa. Se trouxesse ideias. Se ajudasse a família a vender o peixe. Se montasse um quiosque. Se abrisse um pequeno serviço. Valor cria-se.
Conheço São Tomé. Estive lá várias vezes. Na cidade, numa esquina, uma mulher levantou um restaurante modesto com tábuas de madeira. Era barato e a comida, extraordinária. Turistas e trabalhadores paravam para almoçar. Com o tempo mudou-se para outro espaço. Cresceu. Melhorou. Não foi sorte. Foi imaginação, trabalho e constância.
Se ela ama o homem de São Tomé, que faça o esforço. Que use a imaginação para melhorar a vida comum. Que trabalhe, aprenda, tente, erre, ajuste, volte a tentar. Se, ao analisar com seriedade, descobre que não traz nada porque até as mãos e o corpo estão presos à mecânica das selfies e da ilusão de grande beleza, então talvez seja melhor regressar a Angola. Que siga o seu circuito de maquilhagens e fotografias. Mas que não confunda luz de ecrã com vida. E que quem a vir sem filtros não se espante.