
A notícia de que Barceló de Carvalho, o número cantor angolano conhecido por Bonga, foi pai de gémeos aos oitenta e três anos correu a cidade como brisa morna; abriu sorrisos nos cafés, acendeu conversas nas esquinas, pôs um brilho travesso nos olhos cansados. Muitos leram nela um sinal de reafirmação; como se a seiva do país, longe de mirrar, tivesse encontrado novo curso e, de súbito, cantasse.
O que nos assombra, a nós homens, é a velha sombra da extinção; a ideia de que, partindo, tudo cessa, e o nome se apaga como giz sob a chuva. Daí a pergunta que não cessa, dita quase em surdina, serei ainda capaz de gerar. Há quem, com o orgulho a tremer e a esperança em bicos de pés, engula o comprimido azul como se fosse um voto; temendo que a artéria se queixe, pedindo ao céu que o voo dure o bastante para que o rito se cumpra sem castigo. Entre uma jaculatória e um sorriso culpado, pede-se que o fervor não desemboque em desastre; que a alegria chegue inteira, sem o susto da perda.
Se uma mulher da mesma idade ousasse semelhante vitalidade, seria remetida às páginas dóceis dos manuais de bem-viver, às colunas que prescrevem sopas claras, passos contados, prudências de alcova; o mais ficaria em letra miúda. Persiste esse desnível antigo, vitrina de moral que louva o arrojo no homem e arquiva a ousadia na mulher. Contudo, o corpo bem cuidado não conhece calendários morais; responde à disciplina, à alegria, ao trato paciente do tempo.
Digo-o com conhecimento de mesa e de lume. Bonga recebeu-nos um dia em sua casa; cozinhou ele próprio, com a precisão de quem sabe a altura do fogo e a medida do sal. É excelente cozinheiro, avaro em excessos; guarda, no corpo, o método aprendido nos anos de atleta. Mantém-se em forma sem espalhafato, com um ginásio de sobriedade útil; trabalha o pavimento pélvico, de pé, em verticalidade franca, como se a força nascesse do centro e dali se distribuísse pelos membros. O vigor, percebe-se, não é um acaso; é uma música interior afinada com paciência.
Não esqueçamos a figura do patriarca; à maneira do soba que vela pela continuidade do clã e mede o tempo pelo destino dos seus. Chegado a certa idade, o chefe procura a companheira que assegure o fôlego da casa; não por capricho, mas por uma gramática de sobrevivência que a velhice conhece bem. Um homem que atravessa décadas com saúde e aprumo sugere genes longos; promessa de vidas demoradas. Que mãe não desejaria para os filhos essa dádiva de longevidade. E não são apenas os genes que pesam no prato; há o timbre que comove, o ouvido que escuta, a disciplina do ofício, a delicadeza aprendida nas viagens. É essa soma que pode atrair uma mulher mais jovem, não por constrangimento, mas por legítima fascinação; um homem assim sabe o compasso, conhece a palavra certa, move o mundo com a discrição de quem já viu o mundo mover-se.
E a Escritura, memória dos nossos embaraços, regista o zelo pela linhagem. Sara, impaciente com a demora da promessa, ofereceu Agar a Abraão para que não se quebrasse a linha dos seus; gesto difícil, mas revelador do quanto a descendência importava. Também aqui a estirpe pede passo; por veredas que alguns julgarão heterodoxas, a linhagem de Bonga encontra ritmo, acelera quando necessário, prossegue. Como rio antigo que, depois de pedras e areias, ainda sabe o caminho do mar.
Como em qualquer aldeia, os mais velhos e os mais novos debruçaram-se sobre as fotografias dos gémeos com a paciência dos peritos; examinaram a dobra do queixo, a linha do maxilar, a curva da testa, a luz do olhar. É a velha arte infalível de cotejar sem laboratório, praticada em varandas, sob mangueiras, nos corredores dos prédios; quando não há DNA, há memória de rosto. E a conclusão, dita em coro, com riso satisfeito, não tardou; são o vivo retrato do grande homem, parece que se replicou, que a natureza copiou a matriz com capricho e sem pressa.
Para a nação angolana, sobretudo para os homens, seria motivo de gratidão sem medida ouvir o nosso grande irmão soletrar o segredo da sua vitalidade e da sua delicadeza; explicar, sem pressa, a arte de convocar e harmonizar, de juntar talentos dispersos e fazer deles equipas de sonho. Não para o mitificar, mas para transmitir ofício; para que o vigor não morra com o mestre, e a suavidade e a banga se façam escola.
Assinado: Jousa Jamba